Uma nova abordagem prega o casamento feliz entre tratamentos convencionais e terapias alternativas. Até que ponto isso é possível?
Ninguém merece o padrão de atendimento oferecido pela maioria dos consultórios médicos: uma hora de espera, um propagandista de laboratório que sempre fura a fila, 15 minutos de consulta com o doutor ligado no piloto automático. Essa engrenagem surrada desencadeia uma perigosa relação de meias verdades. O médico rabisca a receita sem explicar direito suas escolhas, nem detalhar os efeitos colaterais. E o paciente não tem coragem de contar que, além dos comprimidos, vai continuar usando chazinhos, cápsulas fitoterápicas, terapias alternativas que, 'se não curam, mal também não fazem'.
Um em cada três adultos utiliza algum tipo de tratamento alternativo e, na maioria das vezes, não conta ao médico, segundo um levantamento nacional encomendado pelo governo americano. O Brasil não dispõe de dados desse tipo, mas os especialistas supõem que o índice seja semelhante. Já que é impossível varrer essas terapias para baixo do tapete, a academia decidiu submetê-las ao escrutínio da Ciência ocidental. Essa é a missão da chamada medicina integrativa, área em ascensão que procura casar recursos convencionais com terapias complementares, desde que minimamente embasadas em estudos científicos.
CASAMENTO
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O guru da medicina integrativa é Andrew Weil, da Universidade do Arizona. Tão popular nos Estados Unidos quanto Drauzio Varella no Brasil, o doutor Weil é um fenômeno editorial. Autor de dez livros sobre vida saudável, vendeu mais de 4 milhões de cópias. O título mais recente é Healthy Aging (Envelhecer com Saúde), ainda inédito por aqui, que alcançou o topo da lista dos best-sellers do jornal The New York Times. O guia propõe mudanças de atitude (leia o quadro abaixo e trecho à página 94) para viver bem e chegar à maturidade com equilíbrio físico e emocional. A cada lançamento, a estranha figura de barba branca torna-se onipresente. ä
Dos programas de TV de maior audiência - Larry King, Oprah Winfrey, Martha Stewart - à capa da revista Time, o doutor Weil está em toda parte, além de manter um site (www. drweil.com) que contabiliza 2,2 milhões de visitas ao mês. O que o diferencia é a idéia de que a medicina convencional é insubstituível para enfrentar crises e emergências, mas os métodos alternativos seriam os mais indicados quando se trata de prevenção e manutenção da saúde. A receita de Weil baseia-se em cinco pilares: atividade física, controle do stress, sono adequado, espiritualidade e nutrição.
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Ele é o divulgador da dieta antiinflamatória. Partindo do princípio de que alguns alimentos influenciam os níveis de hormônios envolvidos no processo inflamatório, Weil propõe uma alimentação rica em ômega 3 (salmão, sardinha e ovos fortificados com o nutriente), frutas e vegetais frescos e o mínimo de alimentos industrializados. Cada refeição deve ser composta de 50% de carboidratos, 30% de gorduras (reduzir as saturadas, como manteiga, e evitar as do tipo trans, como margarina) e 20% de proteínas. Além de um cardápio traçado com a ajuda de nutricionista, sugere a adoção de suplementos vitamínicos para repor nutrientes em falta no organismo.
A tese é a de que essa dieta ajuda o organismo a regular o processo inflamatório, ou seja, ativá-lo quando é preciso se defender de uma infecção e desativá-lo depois de destruído o invasor. O processo inflamatório constante causa danos aos tecidos saudáveis e está envolvido em males cardiovasculares, doenças degenerativas e câncer. 'Essa não é uma dieta de emagrecimento, mas quem a segue ganha mais energia, pele e cabelos bonitos, saúde mental e emocional', diz Weil. 'O peso também tende a se normalizar, principalmente se a pessoa fizer atividade física', comenta.
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Uma das principais bandeiras do natureba de 63 anos que confessa tomar estatinas para aumentar a produção do colesterol bom (HDL) é o combate à indústria do rejuvenescimento. Ele postula que é preciso aceitar a passagem do tempo com dignidade, reconhecendo a velhice como um valor. A pregação não o impediu de emprestar sua imagem à empresa de cosméticos Origins para lançar um creme facial à base de cogumelos - que, segundo ele, possui ação antiinflamatória e mantém a pele bonita ao longo dos anos. Cada pote custa US$ 65. O médico alega ter aceito a proposta para poder custear sua fundação, que recebe alunos de várias partes do mundo.
A medicina integrativa bem que poderia ser apenas mais uma moda lançada por um bicho-grilo alçado à fama pela máquina de construir celebridades que é a mídia americana. Mas o conceito está sendo levado muito a sério por um consórcio de 28 prestigiadas universidades, como Harvard Medical School, Columbia e Duke University. Cada uma dessas escolas médicas criou núcleos para pesquisar e ensinar os benefícios de uma união que sempre pareceu impossível. Só em 2005, o Centro Nacional de Medicina Complementar e Alternativa (NCCAM), criado pelo governo americano, conta com um orçamento de US$ 123 milhões para regulamentar o setor e submeter as terapias a estudos.
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As pesquisas envolvem desde métodos consagrados, como acupuntura (reconhecida como especialidade no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina), a técnicas orientais milenares vistas pela maioria dos ocidentais como coisa de gurus de origem duvidosa. Uma delas é o qi gong (pronuncia-se tchi kun), conjunto de exercícios, posturas e meditações criado com o objetivo de captar a energia da natureza e poupar a energia do indivíduo para fortalecer seu sistema imunológico. No Japão, na Europa e nos Estados Unidos, a prática tem sido utilizada como coadjuvante no tratamento de doentes de Aids e câncer.
Outra terapia polêmica é o reiki, técnica japonesa utilizada para diminuição do stress e relaxamento. Os adeptos acreditam que a energia vital possa fluir das mãos de uma pessoa para o corpo da outra, a ponto de aumentar o bem-estar e até reduzir os efeitos colaterais da quimioterapia e da radioterapia, como sugerem algumas pesquisas localizadas. O National Institute of Health (o equivalente ao Ministério da Saúde nos Estados Unidos) está patrocinando cinco estudos clínicos que vão avaliar o papel do reiki no tratamento de pacientes de fibromialgia, dores neuropáticas, câncer de próstata e Aids.
'Nosso interesse é entender como as terapias alternativas afetam o corpo e a mente dos pacientes. Métodos como reiki, meditação e aromaterapia estão sendo submetidos a estudos rigorosos, mas ainda não temos respostas definitivas sobre a eficácia deles', disse a ÉPOCA Catherine Stoney, da divisão de pesquisa e treinamento do NCCAM. Os médicos não esperam que essas terapias curem os pacientes. Mas acreditam que elas possam funcionar como coadjuvantes na redução do stress, o que favorece o bom funcionamento do sistema imunológico. 'As evidências de benefício dessas práticas são muito subjetivas, porque é muito difícil quantificar até que ponto elas são as responsáveis pelo bem-estar relatado', comenta Giovanni Guido Cerri, diretor-científico da Associação Médica Brasileira.
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Esse é um ponto nevrálgico. Em medicina, as evidências são construídas com base em diferentes categorias de estudos clínicos. Os mais confiáveis são os multicêntricos (que envolvem grande número de pacientes), randomizados (pacientes distribuídos aleatoriamente em dois grupos: o que recebe o tratamento e o que serve de controle) e duplo-cegos (nem o paciente nem o médico sabem se o indivíduo está recebendo o tratamento real ou o placebo - pílula sem princípio ativo). No caso de terapias como reiki e meditação, é difícil criar estudos desse tipo porque os pacientes sabem que estão sendo tratados.
Outro fator complicador é o chamado efeito placebo. Pesquisas demonstram que a proporção de pacientes que respondem positivamente quando acham que algo lhes fará bem pode variar de 20% a 100%, dependendo do distúrbio. Há duas hipóteses para explicar esse mecanismo. O simples fato de saber que está sendo tratado pode fazer o paciente se sentir menos ansioso e estressado, e com isso recuperar-se melhor. Além disso, as pílulas de 'efeito moral' estimulam a liberação de endorfinas, analgésicos naturais do corpo humano. Não é absurdo imaginar que o efeito placebo seja ainda mais poderoso quando o paciente recebe o tratamento por meio das mãos de um terapeuta, o que por si só é uma demonstração de desejo de recuperação.
Seja qual for a explicação para o sucesso dessas terapias, o fato é que o bem-estar relatado pelos adeptos está fazendo a academia se mexer, ä inclusive no Brasil. Estudos da Universidade Federal de São Paulo têm comprovado os benefícios da meditação como método complementar no tratamento de ansiedade, depressão e dependência de drogas. Em 2006, começará uma pesquisa que vai investigar o efeito da técnica em idosos hipertensos que, apesar da medicação, continuam com pressão arterial elevada. A teoria é a de que a técnica modifica sistemas neurotransmissores no cérebro e reduz a ação exagerada do sistema simpático, responsável por boa parte dos casos de hipertensão. 'A medicina integrativa tem um papel importante porque 80% dos problemas médicos são decorrentes de distúrbios comportamentais, como obesidade, stress e transtornos de ansiedade', diz José Roberto Leite, coordenador da Unidade de Medicina Comportamental da Unifesp. Entre as estratégias adotadas pelo centro estão relaxamento, hipnose e até life coaching, método de gerenciamento do estilo de vida que nasceu entre os gurus de administração e chegou à Medicina. O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, também oferece acupuntura, massagem e meditação para aliviar sintomas de pacientes sem chance de cura.
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'A maior contribuição da medicina integrativa é olhar o paciente como um conjunto indissociável de corpo, mente e espírito', comenta o médico Paulo de Tarso Lima. Especialista em cirurgia plástica, Lima sentia a necessidade de oferecer algo mais às pacientes que se sentiam infelizes ao perceber que a vida continuava ruim apesar da prótese de silicone ou do lifting facial. Omédico decidiu cursar o programa de medicina integrativa da Universidade do Arizona e, por enquanto, é o único da América Latina formado pelo doutor Weil. Já na recepção da clínica, o visitante percebe cuidados que ajudam a deixar o stress do lado de fora: poltronas confortáveis, jazz tocado baixinho, chás selecionados. Cada consulta dura em média uma hora e meia (o médico pede uma bateria de exames e faz um inventário completo da vida do paciente) e custa R$ 350. Suplementos vitamínicos e medicamentos fitoterápicos são cuidadosamente escolhidos a fim de evitar interações indesejadas com os medicamentos convencionais. 'Fitoterápicos podem ser muito perigosos quando usados sem orientação adequada ou quando os extratos são de origem duvidosa', explica Lima. Com as cápsulas, o paciente desembolsa mais R$ 300 por mês, além de sessões de shiatsu ou qi gong a R$ 120 cada uma. A concepção de que o paciente é muito mais que um corpo que não funciona direito renova a Medicina. Mas tanta atenção ainda é artigo de luxo.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG72427-6014,00-A+MEDICINA+DO+EQUILIBRIO.html